Precisamos falar de bagunça digital
22/08/2020 20:20
Devido ao avanço e à facilidade das novas tecnologias digitais, estamos produzindo coisas demais - textos, fotos, vídeos. Devido à rapidez e à capacidade de armazenamento dos dispositivos eletrônicos e sites "na nuvem", ao mesmo tempo que produzimos muito, também estamos perdendo coisas demais.
Estamos perdendo coisas por vários motivos: porque não sabemos o que temos, não lembramos de tudo o que produzimos, não sabemos direito onde guardamos (se é que guardamos), ou porque não conseguimos resgatar ou extrair corretamente esses dados guardados. Muitas coisas vêm sendo esquecidas e perdidas pelos caminhos telemáticos, pelas infinitas superhighways da informação. Às vezes, perdemos dados porque os lançamos de um jeito desleixado num backup qualquer, preocupados mais com onde guardá-los do que como acessar aquela informação depois.
Outras vezes, perdemos dados porque estão trancafiados em dispositivos tecnológicos que ninguém mais conhece ou sabe usar. E aí ficamos à mercê da passagem do tempo e da obsolescência programada, vendo informação importante encerrada em jaulas tecnológicas obsoletas que nos deixam presos do lado de fora de nossas "memórias".
Conseguimos a proeza, na atualidade, de sermos a espécie humana que mais produz coisas, mas que é capaz de lembrar de quase nada. Somos grandes criadores de terabytes diários, incansáveis colecionadores de dados, mas precisamos perguntar ao Google o que aconteceu no mundo no verão passado.
Grandes devoradores de filmes e seriados, somos incapazes de lembrar de datas e feitos históricos, personagens reais ilustres, gente de envergadura que realmente fez algo de importante para o mundo. Construímos horas infindáveis de histórias líquidas, em vídeos que ninguém tem tempo de ver, e sequer lembramos pequenas partes de todas essas histórias contadas.
Nesta nossa tresloucada vida líquida, o tempo digital escorre de nossas mãos - mas seguimos acreditando na frágil certeza de que, se precisarmos, teremos a informação necessária ao alcance dos dedos.
Por tudo isso, precisamos falar sobre bagunça digital (também chamada “Dark Data”). Precisamos falar sobre as coisas úteis, sobre as centenas de dados redundantes e fúteis e também sobre as belezas que esquecemos gravadas no "buraco negro" de HDs virtuais e outros dispositivos terceirizadores da nossa memória orgânica.
Há gente que confunde "guardar informações" com "depositar lotes de arquivos" em máquinas locais ou em nuvens longínquas. Mas salvar arquivos em pastas com nomes genéricos ou datas de criação pode até significar algo hoje, mas não diz muito a médio ou longo prazo. Pois, ao gravarmos lotes de arquivos sem fazer triagem, sem escolher os melhores momentos, as frases e os vídeos mais incríveis, não fazemos destaques, deixamos tudo como se fosse homogeneamente igual. E, sem destacar os especiais, sem separar o joio do trigo, sem coletar as pérolas em meio ao lixo, nós não criamos SIGNIFICADOS.
Quando deixamos "tudo lá", junto e misturado, armazenado Deus sabe onde (e muitas vezes só Deus sabe como), desprezamos o trabalho de analisar e revisar os dados, e não exaltamos o significado das coisas criadas por nós. Se não organizamos os dados respeitando a hierarquia de nossos sentimentos, apenas os depositamos todos lado a lado, numa democracia cega que não respeita valores e trata tudo como número. E, sem rever o valor do que produzimos, sem destacar seus pontos altos, acabamos não preservando a nossa MEMÓRIA.
Quando não preservamos a nossa memória, estamos agindo de forma consciente ou não para a sua desconstrução a médio prazo, e para a sua total destruição num futuro talvez não tão distante. Por isso, vale a pena pensar: quanto custa guardar seus dados? Você sabe avaliar qual o custo emocional da perda de suas memórias, e qual o custo histórico de toda essa desconstrução e destruição?
Porque a nossa memória não é um mero cesto abarrotado de objetos, ou um cartão de memória ou pendrive plenos de arquivos digitais soltos. A nossa memória não é um CD de música ou DVD de filme esquecido na estante, ou no fundo de um armário qualquer (pelo fato de não se ter mais um dispositivo que os leia, e que nos possa contar as histórias de como antes sabíamos nos divertir com tão pouco).
A nossa memória só é, de fato, construída, quando selecionamos os melhores momentos dentre os vários iguais, quando olhamos mais de uma vez o que nos encantou a alma pela beleza ou pelo inusitado. Não basta saber "que está lá"; é preciso pegar na mão, olhar de novo, mostrar a alguém querido o que nos chamou a atenção no passado. Precisamos mostrar a nós mesmos que não morremos no passado inerte dos arquivos de dados, mas que estamos salvos - e por que estamos salvos.
Se você não revê o fato registrado, não dá replay em cenas antigas, não lê manuscritos criados por antigas mãos e construídos com desatualizadas ortografias, como sentir o peso da memória? Como avaliar o que é mais marcante, o que pesa mais ao coração? Como saber quais são, de fato, as memórias mais valiosas para você?
Vivemos a ilusão de estar num grande presente permanente, como se todos nós, pelo fato de estarmos permanentemente online, não tivéssemos passado nem futuro. Como se nós, seres das redes digitais, fôssemos eternamente jovens (e não fôssemos envelhecer), como se não precisássemos nos preocupar com o passado, nem com o futuro - e muito menos com o excesso de lixo digital diário que produzimos de forma nada ecológica, nem inteligente.
O que você vem produzindo digitalmente que está apenas no seu celular ou no seu computador, e ninguém sabe? Quantas pesquisas temáticas você fez, quantos dados reuniu por alguma razão e, depois, largou esquecidos em algum diretório de backup? Por que não rever essas pesquisas, selecionar essas informações e reorganizá-las em algum blog, livro ou até mesmo trazê-las à lembrança para enriquecer uma conversa entre amigos?
Quantas fotografias você tirou e não revelou, não transformou em porta-retratos ou fotolivros, ou quadros? Quantas imagens belas estão escondidas dos olhos dos seus familiares e amigos? Quantos fatos importantes para você passaram longe dos olhos de seus filhos e parceiros?
Precisamos relembrar que a memória só persiste se é feita de dados bem coletados, armazenados com carinho e dedicação em lugares certos. Necessitamos resgatar a vida que há em nossos arquivos mortos. Viver não é só produzir, criar por criar, mas é também relembrar e reproduzir. Afinal, para que servem as memórias, se não for para a gente acariciá-las e compartilhá-las com afeto?
[© Rosy Feros, 22/08/2020]
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