Literatura é bicho livre
19/01/2015 01:21
Dizem que a literatura morreu e que ninguém mais se importa com ela. Há quem diga que em nossos interesses, hoje, não há mais tempo nem lugar para a literatura. Muito menos para a poesia.
Enquanto ouço e leio dizerem estas bobagens, ouço o uivo dela pelos cantos mais insuspeitos. Quanto mais insistem em falar de sua morte, mais a sinto cavoucando frestas, arranhando muros, abrindo janelas. A literatura tem estado em vários lugares, ostensiva e subliminarmente. E só quem é distraído ou desinformado é incapaz de ver.
O que acontece é que ela está, muitas vezes, irreconhecível. Diria que está com roupas diferentes. Hoje, ela se veste mais colorida, não segue modelos pré-definidos, está quebrando normas e re-inventando fronteiras. E, sem dúvida, os novos prados por onde ela vagueia estão transformando sua mensagem.
Talvez por isto passe despercebida. Mas será mesmo que ninguém a vê?
A literatura não morreu, só mudou de cara
Em nossa tresloucada era das imagens, a literatura também está nas imagens. É fácil encontrá-la em fotos de jornais e revistas, nas ruas e muros, em anúncios comerciais, histórias em quadrinhos, vinhetas de TV, banners e páginas de internet.
Ela é cantada nas ruas por cartomantes e feirantes, surge incauta em meio a publicações empresariais. Não raro, veste-se de prosa poética, laudas jornalísticas, videoclipes, slogans, canções pop, jingles comerciais, animações em Java, Shockwave, Flash.
A literatura está por todos os lugares, devassando nosso cotidiano sem piedade e sem dó.
Quem crê na hipótese de que ela morreu, na verdade carece de observar sua transformação em ricas metamorfoses. A literatura, como peça e pele da cultura viva, também se movimenta. Acompanha o tempo, suas paixões e vontades. Como poderia ela se esquivar das novas tecnologias e seus prazeres?
A literatura de hoje é multimídia
Consumir literatura, saboreá-la, mordiscá-la como quem come uma sobremesa, ou fartar-se dela como quem mata a fome, também é uma atitude nova. Não precisamos de toda a pompa e circunstância do passado para absorvê-la. Ao contrário: seu ritmo novo surpreende pela velocidade.
A literatura de hoje é multimídia: chega até nós com cores, formas, sons, sabores, sensações. Vem através de todos os sentidos - olhos, ouvidos, nariz, boca, tato. Está formatada para todos os gostos - e gastos. Seja em estórias ao pé do fogão, em saraus bem-comportados, edições capa-dura a preços nada módicos, diálogos de telenovela, piscando na tela do computador em bytes de CD-ROM, ou online, à espera de um click de mouse na barra de rolagem.
Livre, leve, solta e reformatada
Hoje, ela está sendo cantada em prosa, verso, som e imagem. De preferência, com tudo isto misturado. A mistura, que dá a idéia da liberdade, é a mesma que lhe garante a vida útil.
Talvez os que apregoam sua morte não estejam satisfeitos com sua rebeldia, com seus traços de princesa-plebéia arredia querendo se misturar ao povo, contrabandeando o fogo dos deuses.
Esses que apregoam sua morte serão os puristas, os elitistas, os que a querem só em livros e edições luxuosas, à mercê dos altares dos críticos? Esperam eles que a literatura, amofinada, mofe e jamais saia do papel?
Literatura fixada no papel é letra morta, é coleção de asa de borboletas. Ela só é viva quando cantada, recitada, transfigurada e revivida em outras formas. Teatralizada, musicada, televisionada, ilustrada, controvertida. A literatura viva está fora das estantes - e, se chegou até elas, é porque já está domesticada, esperando a próxima cria...
Literatura de verdade é bicho solto, livre, sem regras. Literatura viva é comida em panela sem tampa, cozinhando, aromatizando a vida, em fogo aceso. Não dá para controlar seu cheiro, muito menos tentar lhe pôr arreio.
Para espanto ou glória de muitos, a literatura está aí: livre, leve e solta. Agora que disseram que ela pode seguir livre, está por todos os lugares. E qualquer um pode chegar até ela. E (re)fazê-la.
[Rosy Feros, 1999]