Faísca em tempo de Quarentena
03/04/2020 18:18
Nosso cérebro foi criado para a dúvida, e não para as certezas. Informações conflitantes agem em nosso cérebro fazendo os neurônios se comunicarem, da mesma forma como palitos em atrito produzem fogo.
Informações em atrito provocam questionamento, e é dessa explosão que nascem as novas ideias, os insights. A criatividade nasce a partir dos questionamentos, e é também do questionamento que nasce o conhecimento.
Como não há verdadeiro conhecimento sem questionamento, sem o uso do senso crítico de quem quer aprender, não há criatividade sem conhecimento. E não há como fazer brotar coisa nova onde não existe dúvida.
Até somos capazes de viver baseados em certezas, ou na ilusão delas. Mas isto estaria longe de ser uma vida plena, sustentada por conhecimento profundo e criatividade. Afinal, o que mais a vida nos ensina é que somos movimentados continuamente por imprevisibilidades, e que a ordem (e a beleza) é criada a partir do caos.
Uma vida dirigida por certezas não pode ser plena, pois não faz uso desta imensa máquina de incertezas, tão perfeita quanto desconhecida, que é o cérebro humano.
As certezas, com sua visão simplista e binária, têm mais a ver com a porção cerebral que herdamos dos répteis do que com todo o resto que nos permite sermos humanos. As crenças na certeza da verdade que há nas ordens do chefe do grupo, por sua vez, essas nos aproximam dos mamíferos, nossos companheiros na caminhada evolutiva.
Ficar em casa, confinado por causa da pandemia, aterrorizado pelas notícias e com medo de sair às ruas e morrer, é um comportamento reptiliano. Manter-se em casa, privado do mundo cruel, isolado em pensamentos de compaixão pela humanidade que sofre, aterrorizado pela possibilidade de extinção da espécie e tentando preservar os entes queridos e os demais, é um comportamento mamífero, associado ao complexo cerebral límbico.
Proteger a si mesmo de influências maléficas à saúde, zelar pela manutenção da saúde e bem-estar dos que são próximos e buscar entender a origem do mal comum, perder-se no emaranhado de dados produzidos ao andar das horas e querer encontrar, por si mesmo, um norte, uma luz, baseado em toda a diversidade de fatos que nos cercam diariamente, é humano.
Não podemos esquecer que defender nossa vida contra a morte é um direito básico - reptiliano, é certo, mas legítimo. Também não devemos ignorar que muitas das ações humanitárias mais significativas de toda a História foram motivadas pelo sentimento de pertencimento a um determinado grupo ou pelo desejo ardente de defender aqueles considerados nossos iguais, da nossa família ideológica, do nosso bando.
Mas somos, e devemos ser, maiores do que isso. Devemos fazer jus aos esforços evolutivos da espécie e exercitarmos nossas habilidades humanas divergentes, indo além dos répteis e do que os mamíferos podem alcançar.
Águas plácidas, céu de brigadeiro, certezas, são ilusões. A vida vem em ondas, como o mar. Nosso cérebro desenvolve-se a partir da dúvida. Talvez por isso que Hipócrates, considerado o Pai da Medicina, tenha orientado acender várias fogueiras por toda a cidade, após uma epidemia em Atenas... Centelha de conhecimento?
[Por Rosy Feros, 03/04/2020, em tempo de quarentena]