Demolindo vivências, desconstruindo a História

29/12/2019 23:08

Não digo que sou contra o Modernismo, ou quaisquer outros estilos ou tendências estéticas. Afinal de contas, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, “a fila anda” também no sentido estético e sempre há gosto para tudo.

Mas confesso que não me conformo com a ideia de se destruir qualquer edificação em uso, de alto valor arquitetônico ou histórico, para substituí-la por qualquer outra construção - moderna, sim, mas sem o mesmo valor, sem a mesma densidade histórica e social.

Prédios contam histórias. E existem para nos mostrar como era o mundo antes de nós. Demolir um edifício é, socialmente falando, enterrar ou apagar a sua história. Substituí-lo por outro mais novo, com outra função e outros propósitos, então, é desconstruir a História. Não tem como estas ações não repercutirem no futuro e não confundirem as pessoas, os locais de uso, os modos de viver.

Tudo bem que viver nas grandes cidades (e até mesmo nas pequenas) é colecionar patrimônios arquitetônicos e culturais destruídos, ou remodelados com o tempo. Só que, atuando desta forma, vivemos muito, e sem perceber, escondendo as vivências antigas dos olhos dos mais jovens, que desconhecem grande parte do que foi construído antes deles.

Também é compreensível a ideia de que, para se validar o antigo, é preciso remodelá-lo, adaptá-lo aos novos tempos. É legítimo empreender esforços para que o antigo não se desgaste, não perca seu sentido e conserve seus significados - ou então para que se adapte e seja flexibilizado, a fim de gerar novos significados e assumir novos sentidos.

Quando os olhos não veem, o coração não sabe e não compreende. Quando omitem de meus olhos o que foi gerado e construído antes de mim, estão me impedindo de saber de onde eu vim e para onde, provavelmente, poderia seguir. E estão me fazendo ter a falsa ilusão de que o que sou e o que penso é inédito, original sem cópia, que “ninguém fez nada de diferente antes de mim”. Quando, na verdade, não existe novidade genuína, que nasça livre de quaisquer raízes pregressas; não há revolução que não seja uma espécie de reconstrução ou revisão do passado.

Numa época em que se prega tanto o respeito à diversidade, penso que deveria haver espaço para tudo - e isto vale também para a Arquitetura, e diz respeito a todo o nosso patrimônio histórico. Porque devemos destruir algo para construir outra coisa em seu lugar? Não há sentido sociocultural nisto, a meu ver, somente um significado de poder: do velho sendo substituído pelo novo, literalmente. Mas sendo substituído segundo a mudança dos ventos políticos, que mudam mais do que as marés e nada estão preocupados com a História, com as verdades permanentes da sabedoria da humanidade.

Precisamos observar com mais carinho (ou, talvez, com novos olhos) o que as nossas sociedades têm estado construindo até aqui. E, tão importante quanto: devemos prestar atenção no que está sendo demolido, descartado e desconstruído. Quais os possíveis interesses por trás disso? O que querem enterrar, esconder, obstruir? Por que é necessário abrir espaço para o novo usando-se, necessariamente, o espaço do antigo? Substituições de edificações arquitetônicas são sempre necessárias?

A demolição pura e simples de prédios históricos, e a consequente transformação dessas vivências e memórias em arquivo morto, caminha na direção contrária a qualquer discurso que se pretenda democrático e que invoque o respeito às diferenças e o cultivo da diversidade.

 

[Rosy Feros, 29/12/2019]

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