A poética fractal e multimídia das mídias eletrônicas

12/09/2014 23:33

 

A velocidade dos novos tempos e a sobreposição de vários estímulos sensoriais têm-nos induzido à economia verbal e ao raciocínio por imagens, potencializando a função poética da linguagem. Uma nova percepção do mundo, nascida da leitura das mídias eletrônicas, está se desenvolvendo.

 

O boato de que a poesia morreu

Em vários lugares tem-se dito que a poesia morreu, ou que as pessoas não estão interessadas ou não têm mais paciência com relação a ela. Mas isto tem-se revelado, aos poucos, uma grande mentira. Nunca houve tanta gente fazendo poesia como agora, brincando com ela ou levando-a a sério como recurso de comunicação ou experiência lingüística.

Um olhar atento nas formas de comunicação contemporâneas revela este fenômeno.Mais que função lingüística ou gênero literário, a poesia vem transformando-se em estilo de vida, espécie de visão de mundo, em elemento integrador e catalisador de sentidos em várias práticas de comunicação. Pouca gente, entretanto, tem percebido o fato. Ou, se o tem reconhecido, talvez não esteja atribuindo a ele a sua devida importância.

 

Velocidade da vida urbana impõe economia verbal

Tal fenômeno lingüístico, que pode parecer simples à primeira vista mas é bastante complexo de se explicar, resulta de vários fatores ambientais, nem sempre diretamente relacionados à língua e à linguagem. Algumas possíveis causas desse (res)surgimento da poesia em nossa vida, contudo, podem ser especuladas tendo-se em vista certas mudanças  em nosso comportamento social, intensamente sentidas nas últimas décadas do século 20.

Como exigência contemporânea, cada vez mais temos sido incitados a ser breves e concisos em nossas comunicações. A rapidez da vida urbana, o stress das relações sociais, a enorme quantidade de dados e informações a que estamos expostos diariamente, o pouco tempo de que dispomos para analisar e verificar tais dados, as energias de trabalho contadas minuto a minuto e o desenvolvimento recente das redes telemáticas de informação, entre outras coisas, têm contribuído muito para isto acontecer.

 

As imagens de síntese das mídias eletrônicas

A nossa vida, hoje, exige eficiência e praticidade. Somos considerados mais práticos e eficientes à medida que somos mais ágeis e menos prolixos, em todos os sentidos: mais ágeis na ação, na comunicação, no pensamento, na sensação e na emoção.

Juntamente com a necessidade premente de agilidade e síntese, as mídias eletrônicas como a TV, o cinema e os computadores multimídia vêm dominando nossos espaços de educação, entretenimento e lazer. Cada vez mais, estamos habituados à sua linguagem visual-iconográfica e a seu discurso verbal sintético, repletos de entrelinhas.

Adaptados a esta nova realidade tecnológica e multimidiática, cada vez menos estamos interessados em leituras longas e demoradas. Coisas que levam muito tempo para serem feitas, e que não consideram a possibilidade da simultaneidade (no tempo e no espaço), transformaram-se em sinônimo de coisas enfadonhas, anti-produtivas e contra-producentes.

Assim sendo, quanto mais somos pressionados a atuar com agilidade na vida, mais temos que formatar o pensamento e a palavra, de modo que estes caibam dentro dos limites exíguos de nosso cotidiano. Somos obrigados a descartar o supérfluo dos textos longos e maçantes e as imagens redundantes.

Quanto mais ágeis nos tornamos em comunicar, mais tendemos a usar comparações breves, metáforas, elipses, alimentando as entrelinhas e alargando os espaços do não-dito.

 

Música, poesia e memória

Entretanto, engana-se quem pensa que rapidez na comunicação pressupõe, necessariamente, redução de conteúdo e de complexidade. Pode até significar simplificação e distorção de sentido, mas não sempre. Comunicar-se rápido e eficientemente requer habilidades igualmente rápidas e eficientes de pensamento e lógica.

Através desta agilidade de ação e de expressão, abrimos novas oportunidades de atuação para o raciocínio visual, baseado em imagens, e para os recursos sonoros da linguagem. À medida que aproximamos a linguagem verbal (falada e escrita) da linguagem musical e da linguagem poética, tornamos mais fácil o processo de memorização dos conteúdos de informação – otimizando o tempo e rentabilizando a comunicação.

Naturalmente, da mesma forma que a comunicação midiática vem se deixando infiltrar por técnicas e recursos antes quase restritos ao campo das artes, também as artes vêm ganhando novos recursos, transformando-se e potencializando-se.

Nesses processos de comunicação humana, fundamentados sobretudo no fato de uma grande quantidade de informação estar em função de um curto período de tempo, acabamos nos tornando bastante receptivos aos estímulos verbais e visuais que fazem uso da função poética da linguagem. E, até de forma subliminar, vamos acostumando nossos olhos e ouvidos à poesia.

É assim que, sorrateiramente, a poesia vem se instalando em nosso dia-a-dia, infiltrando-se em todos os níveis da comunicação humana – dos mais pessoais e informais aos mais complexos e formais, tanto na esfera privada quanto na pública.

 

Linguagem poética une literatura e publicidade

Tanto nas mídias impressas tradicionais quanto nos novos meios eletrônicos, a linguagem poética tem se reproduzido com velocidade.

A publicidade, por exemplo, que muito usa a retórica das imagens como argumento de venda, freqüentemente tem feito uso da função poética da linguagem, numa tendência crescente. Curiosamente, tal fato nos remete aos primórdios da própria publicidade, que começou com os pregões cantados ao ar livre nos mercados e com os versos rimados dos poetas-redatores da época.

Mas não é só a linguagem poética que tem influenciado a comunicação e a mídia - o contrário também tem se mostrado real. Até porque a comunicação praticada pela mídia sempre sofreu profundas influências das artes, estabelecendo com elas uma íntima ligação.

A literatura, especialmente hoje, encontra-se cada vez mais misturada a condições e situações de  consumo e entretenimento, absorvendo técnicas de comunicação e merchandising e usando a mídia como uma vitrine em potencial.

 

Poesia nas redes telemáticas

Quem navega pela internet sabe muito bem como a comunicação está cada vez mais veloz, querendo dizer tudo com quase nada. Os neologismos diariamente criados pelos internautas são apenas um reflexo disto. Na linguagem coloquial dos e-mails, borbulham frases quebradas em versos, parágrafos repletos de musicalidade. Multiplicam-se os sites literários, cheios de poemas escritos por gente que nunca antes estudou ou se interessou por poesia, mas que a pratica como exercício natural, quase instintivo.

No ambiente telemático das redes, em que a comunicação se metamorfoseia a cada instante, fica mais fácil observar as relações de causa e efeito do processo de reformatação da linguagem às novas condições de tempo - principalmente a questão contemporânea da simultaneidade, tanto no tempo quanto no espaço.

 

Camadas de dados que geram uma nova forma de leitura

Não somos mais homens só de livros degustados ao ritmo dos cruzeiros marítimos, um após o outro, sem pressa. Mais que nunca, temos que dividir nosso tempo com máquinas cujas telas brilham intermitentes em nossos olhos, estimulando-nos à exaustão e oferecendo-nos uma nova forma de leitura que muitas vezes contrapõe-se à tradicional leitura linear que aprendemos na escola.

Os estímulos que recebemos diariamente sobrepõem-se uns aos outros, reproduzindo-se e multiplicando, em proporção geométrica, o volume de informações existentes. Tal sobreposição de estímulos ambientais forma inúmeras camadas de dados à nossa volta, inserindo-nos compulsoriamente em uma espécie de redoma invisível, espécie de campo de força, onde quer que estejamos.

Tais camadas de dados acabam sendo uma barreira invisível que temos que atravessar todo dia, para que possamos conviver satisfatoriamente em sociedade. E a única forma de transpôr essas camadas invisíveis de dados é extrair delas o máximo de informação útil e válida para nossa vida, desprezando todo o restante que não nos interessa.

Esta prática diária, de que mal nos damos conta, acaba sendo uma espécie de treinamento “darwiniano” de sobrevivência social, pois os melhores selecionadores de informação (e não os meros coletores) é que se sobressaem, obtendo vantagens dentro dos grupos sociais.

Por causa deste “treinamento de sobrevivência”, outras e novas maneiras de apreensão do sentido e de fruição das informações estão se desenvolvendo em nosso cérebro. Em outras palavras, estamos desenvolvendo, a partir das mídias eletrônicas e do intenso tráfego invisível e acúmulo de dados à nossa volta, uma nova sensibilidade.

Fazendo uma comparação com a figura de um nadador, poderíamos dizer que não temos tido muito tempo para mergulhos verticais e aprofundamentos, mas que tendemos mais para o nado de superfície – ou seja, para a generalização e uma absorção ampla e fractal de dados.

Nosso raciocínio por imagens está cada vez mais apurado, em detrimento da análise minuciosa e linear das práticas convencionais de assimilação de dados. É o hemisfério direito cerebral, manipulador de imagens e conceitos globais, sendo estimulado mais que o esquerdo, que é verbal, detalhista e analítico.

 

Uma nova poética, fractal e multimídia

Queiramos ou não, estes são os sinais dos novos tempos, que já se fazem marcantes no nosso cotidiano. Se perdemos em profundidade por um lado, como dizem alguns, ganhamos em quantidade de experiências por outro.

Valendo-nos da oportunidade da simultaneidade, tanto no tempo como no espaço, ficamos mais preparados para a complexidade e para a diversidade.

Estas novas formas de absorção de informação e construção de sentido, que geram uma forma de leitura típica do lado direito do cérebro, estimulam, por sua vez, a função poética da linguagem e nossa percepção poética do mundo.

Tal percepção poética, entretanto, tem uma amplitude maior do que se pode presenciar, imaginar ou prever. Sua reverberação sonora e visual acontece no ritmo alucinante das mídias eletrônicas e das redes telemáticas, desenvolvendo-se como um vírus e penetrando subversiva e inadvertidamente em lugares antes pouco convidativos ou mesmo inimagináveis.

Sendo assim, de acordo com o cenário atual em que vivemos e as perspectivas de futuro que se apresentam, podemos supor que a linguagem do futuro tende a ser ainda mais poética, fractal, caótica e multimidiática do que é hoje. E a poesia, à semelhança dos vírus, estará mais atuante do que nunca.

 

[© Rosy Feros, 1999]

 

 

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