A metáfora do corpo I : A civilização do guerreiro
16/08/2014 23:54
O homem, desde a mais tenra infância, está destinado a atuar diretamente sobre o mundo. Dos brinquedos à educação formal, ele aprende que mais importante que se adaptar ao mundo é agir sobre ele. É condicionado, assim, desde menino, a ser o provedor de suas necessidades e de gerar sua independência física e mental, a fim de ser capaz de construir os caminhos por que vai andar pelo mundo.
O corpo e as diferenças de gênero
Diferentemente da mulher, o homem aprende a dirigir sua energia para fora, para a manipulação dos elementos de seu ambiente. Para atuar de forma mais eficaz, ao longo do seu crescimento ele desenvolve o corpo, modela os músculos, adquire força e vigor, agilidade de movimentos, comportamento prático e preciso.
Por estar sua realidade indissociavelmente ligada à ação, sua experiência do mundo é imediata. Em termos de Semiótica, a lógica masculina é arquetipicamente icônica (pois o homem vive e participa direta e ativamente das imagens cosmológicas, disso construindo outras imagens-signos), enquanto a lógica feminina é arquetipicamente simbólica (pois ela, tradicionalmente, vive em função dos signos construídos e manipulados pelo homem, sem ter uma participação direta e imediata nas imagens cosmológicas).
A simbologia do arquétipo do Guerreiro
É o homem o mandante e o executante da vontade, o autor da obra e seu personagem principal, o que move a roda, opera as armas, lança a semente. É a personificação da imagem primordial do Guerreiro, cheio de ânimo e bravura.
Mitologicamente, o homem é a manifestação do brilho do sol na Terra (Rá), o deus da guerra (Ares/Marte), o dono da força e da coragem sem limites (Hércules, Sansão), que maneja com habilidade o martelo (Thor) e a lança, dirige o carro (Osíris) e a corporação (Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda). É o representante do poder divino, que encarna o poder ativo do ritual. É o caçador das oferendas aos deuses, o realizador dos sacrifícios, o detentor dos segredos da terra e dos céus.
Alegoricamente, podemos dizer que vivenciamos hoje, pelo menos na civilização ocidental, as características mais marcantes do arquétipo do Guerreiro. A sociedade capitalista do mercado aberto e da livre concorrência, com seus impérios e monopólios, ao exortar a independência do cidadão frente ao Estado e sua força, livre iniciativa e instinto de competição, está evocando a atitude do grande Guerreiro escondido no fundo de nossa memória coletiva.
O mito do herói na sociedade contemporânea
Para sobreviver na selva de pedra, o cidadão é obrigado a lutar com as armas de que dispõe (sejam elas o dinheiro, o poder da persuasão ou a própria beleza física) para alcançar seu espaço e projetar sua identidade no meio social. A maior parte dos mecanismos de ação e representação presentes nas relações humanas, hoje (os papéis psicológicos, cargos de chefia, a política, etc.), pode ser considerada metáfora da estrutura da guerra: para se alcançar o objetivo, luta-se com as armas disponíveis e usa-se o corpo como principal instrumento de força.
Em nossa estrutura de sociedade contemporânea, porém, vive-se somente uma das várias faces do mito do herói guerreiro: luta-se pelo prazer de usar a força e o corpo na luta mais do que pela certeza de desejar o objetivo. Não podemos esquecer que o arquétipo do Guerreiro encerra não só a questão da luta armada, física e concreta, como também a da luta espiritual, psicológica e metafísica. Pode-se lutar, simbolicamente, tanto com o corpo como com as idéias, e a arma da guerra também pode ser tanto o próprio corpo como as idéias.
Toda a nossa apologia atual tem girado em torno do corpo, da máscara, da aparência e da forma, em detrimento das idéias, do espírito, da alma e do conteúdo. Glorifica-se muito mais a estética das aparências do que a da essência. E entre escolher o caminho da razão e o caminho do espírito, temos preferido o da razão, o da matéria - que diz muito mais do que temos do que o que somos.
Entretanto, na sua evolução natural, esse Guerreiro que assumiu sua força viril mas que esqueceu a que veio descobrirá, mais cedo ou mais tarde, que sua meta está além do próprio corpo e da própria guerra. Seu destino é lutar pela mudança dos conteúdos, é realizar a verdadeira guerra: a guerra das idéias. Preocupando-se basicamente com as aparências, ele apenas transforma o corpo, não o espírito; está patrocinando a manutenção e conservação dos padrões estabelecidos, ao invés de lutar pelo novo. Toda guerra implica numa revolução, e um guerreiro existe para combater a Tradição em nome da força das idéias.
No momento atual, vivemos sem dúvida a grande escolha de Hércules, o grego: ou optamos pela força física do corpo material ou optamos pela resolução intelectual e pela sensibilidade. Somente nosso livre-arbítrio pode nos garantir a salvação, conquistada através do Equilíbrio.
[Rosy Feros, 1993. Ensaio originalmente publicado na revista eletrônica online "InterwNeWWWs" em out/1999]